terça-feira, 29 de setembro de 2015

Quase uma razão

Vejo-te um pouco como se já não houvesse uma casa para nós.
As grandes perguntas estão aí por todo o lado,
onde quer que se respire, dentro dos próprios frutos.
É o começo da noite e os cinzeiros já estão cheios de meias palavras:
porque escolhemos tão pouco aquilo que nos pertence?
Vejo-te de olhos fechados enquanto me confiavas a tua história
– à mesa da cozinha, quase um espelho,quase uma razão.
As minhas canções preferidas pareciam convergir para ti a certa altura, 
dir-se-ia que te vestias com elas.
E no entanto como se apressaram as grandes florestas a invadir as gavetas,
como misturaram as raízes no eco que fazia o teu desejo contra mim.

Rui Pires Cabral

domingo, 27 de setembro de 2015

Viagem



A viagem não começa quando se percorrem distâncias,
mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores.

Mia Couto

Fotos minhas - Évora 2015

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Assim farei


- Tenha cuidado com o vento lá fora, não vá perder o equilíbrio.
- Assim farei.
- Só mais uma coisa - acrescentou ele, sem tirar os olhos do espelho interior.
- Não se esqueça do que lhe digo: as coisas não são o que parecem.
“As coisas não são o que parecem”, repetiu Aomame na sua cabeça.
- O que pretende dizer com isso? - perguntou ela, com a testa franzida.
O taxista escolheu as palavras com todo o cuidado.
- Digo isto porque se prepara para fazer uma coisa «fora do vulgar».
Estou certo ou estou errado?
Normalmente, não se vê ninguém descer pelas escadas de emergência de uma autoestrada metropolitana, à luz do dia. Sobretudo tratando-se de uma mulher.
- Lá nisso dou-lhe razão.
- Aí tem. E quando uma pessoa dá esse passo e «faz» uma coisa desse género, é provável que o cenário quotidiano... como hei de eu dizer?. . . pareça mudado.
As coisas à nossa volta podem revelar-se um pouco «diferentes» do que é costume.
Eu próprio já passei por essa experiência.
Contudo, não se deixe iludir pelas aparências.
A realidade é apenas uma.
Haruki Murakami


quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Caiu-me a alma a uma latrina

Estou como tu dizias aqui há tempos:
"Caiu-me a alma a uma latrina, preciso de um banho por dentro!"
Ega murmurou melancolicamente:
- Essa necessidade de banhos morais está-se tornando com efeito tão frequente!... Devia haver na cidade um estabelecimento para eles.

Eça de Queirós, in "Os Maias".
Fotografia, Rodney Smith.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Ai que prazer cumprir um dever.





Évora, ontem foi dia de uma nova etapa na vida da minha filha.
Muitos dias se seguirão e espero que siga o seu sonho.

domingo, 13 de setembro de 2015

Beautiful Disaster

Não sou boa com números. Com frases-feitas. E com morais de história.
Gosto do que me tira o fôlego. Venero o improvável. Almejo o quase impossível.
Meu coração é livre, mesmo amando tanto.
Tenho um ritmo que me complica.
Uma vontade que não passa. Uma palavra que nunca dorme.
Quer um bom desafio? Experimente gostar de mim.
Não sou fácil. Não colecciono inimigos.
Quase nunca estou para ninguém. Mudo de humor conforme a lua.
Tenho o desassossego dentro da mala.
E um par de asas que nunca deixo.
Às vezes, quando é tarde da noite, eu viajo.
E procuro respostas.
Ontem, eu perdi um sonho. E acordei a chorar.
Bonita mesmo é a vida: um dia, quando menos se espera, se supera.
E chega mais perto de ser quem na verdade é.

Fernanda Mello

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Prometo que vou ser normal

Uma criança com Síndrome de Asperger, em luto. O imenso mundo interno desta criança é como um pano de fundo para toda a história, onde se cruzam as suas características específicas e os sintomas deste luto. Este filme consegue trazer a realidade da perda, vista na perspectiva de uma criança. 

"O que nunca ninguém diz, porventura com medo de parecer vaidoso, é que a inteligência tem um preço: a solidão" (Nuno Lobo Antunes).

Extremely Loud and Incredibly Close - 2011

sábado, 5 de setembro de 2015

Uma tristeza parada na tonalidade do silêncio

Fica comigo. Daqui a nada é noite e as noites custam, a mim custam, sobretudo quando os candeeiros da rua se acendem e as árvores e os prédios fronteiros logo diferentes, quase ninguém na rua, um miúdo com um cão lá ao fundo, uma tristeza parada na tonalidade do silêncio, estes móveis e estes retratos que não me ligam nenhuma, os teus passos na escada, tu no passeio: nem vou à janela olhar, não quero olhar. 
Fica comigo só mais um bocadinho, dez minutos, meia hora, sei lá, o tempo inteiro. Mesmo que não fales. Mesmo que leias a revista do jornal. 
Mesmo que não me toques. Mesmo como se eu não existisse. 
Há alturas, imagina, em que penso que não existo e depois vem a aflição, o medo, o meu pulso tão rápido, a voz da minha mãe, do fundo da infância.


António Lobo Antunes

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Poema aos homens constipados

Pachos na testa, terço na mão
uma botija, chá de limão
zaragatoas, vinho com mel
três aspirinas, creme na pele
grito de medo, chamo a mulher
ai Lurdes, Lurdes, que vou morrer
mede-me a febre, olha-me a goela
cala os miúdos, fecha a janela
não quero canja, nem a salada
ai Lurdes, Lurdes, não vales nada
se tu sonhasses, como me sinto
já vejo a morte, nunca te minto
já vejo o inferno, chamas diabos
anjos estranhos, cornos e rabos
vejo os demónios, nas suas danças
tigres sem listras, bodes de tranças
choros de coruja, risos de grilo
ai Lurdes, Lurdes, que foi aquilo!
Não é a chuva, no meu postigo
ai Lurdes, Lurdes, fica comigo
não é o vento, a cirandar
nem são as vozes, que vêm do mar
não é o pingo de uma torneira
põe-me a santinha, à cabeceira
compõe-me a colcha, fala ao prior
pousa o jesus, no cobertor
chama o doutor, passa a chamada
ai Lurdes, Lurdes, nem dás por nada
faz-me tisanas, e pão-de-ló
não te levantes, que fico só
aqui sozinho a apodrecer
ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.

António Lobo Antunes