quarta-feira, 30 de março de 2016

Esse tudo é nada

Somos todos iguais na fragilidade com que percebemos que temos um corpo e ilusões.
As ambições que demorámos anos a acreditar que alcançávamos,
A pouco e pouco, a pouco e pouco, não são nada quando vistas de uma perspectiva apenas ligeiramente diferente.
Daqui, de onde estou, tudo me parece muito diferente da maneira como esse tudo é visto daí, de onde estás.
Depois, há os olhos que estão ainda mais longe dos teus e dos meus.
Para esses olhos, esse tudo é nada.
Ou esse tudo é ainda mais tudo.
Ou esse tudo é mil coisas vezes mil coisas que nos são impossíveis de compreender, apreender,
porque só temos uma única vida.

JLP

terça-feira, 22 de março de 2016

Onde amanhece

De um e outro lado do que sou,
da luz e da obscuridade,
do ouro e do pó,
ouço pedirem-me que escolha;
e deixe para trás a inquietação,
a dor, um peso de não sei que ansiedade.
Mas levo comigo tudo o que recuso.
Sinto colar-se-me às costas
um resto de noite;
e não sei voltar-me para a frente,
onde amanhece.

Nuno Júdice

quinta-feira, 17 de março de 2016

Arte de florir um dia

Existência
Saída ponderada de nós,
projectando no solo sementes de vindoura esperança.

Esperança de nos tornarmos nós


Expelindo rodas materiais de costumes,

somos o que não somos 

Arte mágica de florir um dia,

por isso existe a Primavera !

e
em cada mão um recado de nós

é decifrado 

HHoje

segunda-feira, 14 de março de 2016

O Torcicologologista, Excelência.

«Nada se aprofunda para os lados.»
–  Eis uma bela expressão popular.
–  Se quiseres escavar um buraco, não o deves fazer para os lados,  
mas sim para baixo.
– Exactamente!
– Mas será que se pode ir mais a fundo de uma coisa subindo por um escadote? 
Eis a questão.
– Pode aprofundar as estrelas subindo, Excelência.
Pode aprofundar o que está lá em cima, levantandoa cabeça.
– Se é assim, devemos reformular a expressão popular e em vez de
«Nada se aprofunda para os lados»
podemos dizer:
«Nada se aprofunda para os lados», 
mas algumas coisas aprofundam-se para cima.
– Isso.
Para conhecer melhor o que é baixo, deves escavar.
– Para conhecer melhor o que é alto, deves subir as escadas.
– Podemos aprofundar com uma pá ou com um escadote. 
São dois instrumentos que aprofundam.

Gonçalo M. Tavares

sexta-feira, 11 de março de 2016

Sete-Luas

Quando de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada a seu lado, a comer pão de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por dentro.

José Saramago
in Memorial do Convento

quarta-feira, 9 de março de 2016

Colorir os passos e os dias

Um poema surge como a cor,
brota e escorre naturalmente qual torrente de água pura e cristalina.
Separar o Amor do Ódio,
tingir o mundo,colorir os passos e os dias,
tal como a noite nos faz renascer.

Tão negros como tão claros,
tão límpidos como um sorriso numa criança triste,
estes pedaços de vida espelhados pelas palavras.

Vede estas alegrias, estas cores,
vede este ser e não ser,este tomar em si a dor.
E não julgueis, mas olhai !

Jamais será como qualquer outra coisa,
o alegórico trespassar da palavra para um infinito tão próprio.

E, o poema, 
esse,
está sempre presente quando se navega 

HHoje

sexta-feira, 4 de março de 2016

Ante o silêncio

Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face
Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio
Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente

Sophia Mello B Andresen