sábado, 31 de outubro de 2015

Todos os diabos se vão

Quando chegar ao fim desta jornada
dir-te-ei o quanto te enganas.
Todos os diabos se vão
Esses teus cadeados inúteis não me apavoram.
Não é natural
que tenha posto aranhas na pele
para depois sofrer.
E volto a adormecer na grande paisagem branca.
HHoje

A conversa de Bolzano

Ide à cidade e contai que cheguei, que estou aqui, que o espectáculo vai começar! 
Chegou, o cavaleiro das saias, o consolador das damas, o médico dos corações quebrados, que conhece segredos para os males do coração e os filtros secretos que se devem deitar na comida do amante desfalecente para que, à noite, ele se mostre de novo vivo e aprazível na cama!

Sándor Marái


domingo, 25 de outubro de 2015

Mãos feridas na porta dum silêncio



Vida que às costas me levas
porque não dás um corpo às tuas trevas?

Porque não dás um som àquela voz
que quer rasgar o teu silêncio em nós?

Porque não dás à pálpebra que pede
aquele olhar que em ti se perde?

Porque não dás vestidos à nudez
que só tu vês?



Natália Correia

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Somos a primeira pessoa do plural


Estamos tão perto uns dos outros. Somos contemporâneos, podemos juntar-nos na mesma frase, conjugarmo-nos no mesmo verbo e, no entanto, carregamos um invisível que nos afasta. 
Ouvimos os vizinhos de cima a arrastarem cadeiras, a atravessarem o corredor com sapatos de salto alto, a sua roupa molhada pinga sobre a nossa roupa a secar; ouvimos a voz dos vizinhos de baixo, dão gargalhadas, a nossa roupa molhada pinga sobre a roupa deles a secar; cheiramos as torradas dos vizinhos do lado, ouvimo-los a chamar o elevador e, no entanto, o nosso maior problema não é apenas não nos reconhecermos na rua. 
O nosso grande problema  é estarmos convencidos que os problemas deles não nos dizem respeito. 
A nossa tragédia é acharmos que não temos nada a ver com isso.


José Luís Peixoto

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Neste chão dito europeu


Neste chão, que muitos nunca pisam, pousam sem repouso os que nunca mais saíram da noite.

Neste chão cruzado por topos de gama, vivem as almas sem tecto nem cama.

Neste chão comprado por indiferentes e amado por diferentes espera-se por horas que nunca chegam e por flores que nunca crescem.

Neste chão esquecido mas não ressequido, caem as lágrimas invisíveis da fome, prepara-se o corpo para o descanso final.

Neste chão de que não se pode fugir, restam os que nunca puderam partir.

Neste chão a pobreza torna-se paisagem e a verdade numa miragem.

José Manuel Rosa

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Silencioso sopro

Arrumei os amores, é a primeira regra da vida – saber arquivá-los, entendê-los, contá-los, esquecê-los.
Mas ninguém nos diz como se sobrevive ao murchar de um sentimento que não murcha.
A amizade só se perde por traição – como a pátria.
Num campo de batalha, num terreno de operações. Não há explicações para o desaparecimento do desejo, última e única lição do mais extraordinário amor.
Mas quando o amor nasce protegido da erosão do corpo, apenas perfume, contorno, coreografado em redor dos arco-íris dessa animada esperança a que chamamos alma – porque se esfuma?
Como é que, de um dia para o outro, a tua voz deixou de me procurar,
e eu deixei que a minha vida dispensasse o espelho da tua?
Inês Pedrosa



quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Uma pauta maravilhosa




Mãe 

Encosta o teu ouvido ao meu peito e ouvirás o oceano... 

Dentro dele, conchas falam das saudades que tenho de ti. 

De manhã, quando o orvalho ainda dorme na planície, 

Eu tenho aquele olhar de criança 

que deixa escorrer a lágrima salgada e pura. 

HHoje


Foto: Carvão Adriana Felgueiras

Instruções para sonhar

Quando os cronópios vão de viagem, encontram os hotéis cheios, os comboios já partiram, chove a potes, os táxis não os querem levar ou querem imenso dinheiro. 
Os cronópios não desanimam, pois julgam que isto acontece a toda a gente e, quando se vão deitar, dizem uns aos outros: 
Bela cidade, belíssima cidade.
 E toda a noite sonham que há grandes festas na cidade e que foram convidados.
No dia seguinte levantam-se todos satisfeitos, e é assim que os cronópios viajam.

Julio Cortázar -
 Viagens com os Famas, Cronópios e Esperanças de Julio - 1962

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Outubro de muitos anos

E que haja coragem para tudo o que terei de enfrentar este mês !!
Quando chegar ao fim desta jornada, 
talvez se faça justiça aos valores que me foram transmitidos.
Ou quantas consciências pesaram pelo meu empenho de tantos Outubros?

HHoje 2015 

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Tenho sido vento estes dias

Como o sangue, corremos dentro dos corpos no momento em que abismos os puxam e devoram. 
Atravessamos cada ramo das árvores interiores que crescem do peito e se estendem pelos braços, pelas pernas, pelos olhares.
As raízes agarram-se ao coração e nós cobrimos cada dedo fino dessas raízes que se fecham e apertam e esmagam essa pedra de fogo.
Como sangue, somos lágrimas.
Como sangue, existimos dentro dos gestos.
As palavras são, tantas vezes, feitas daquilo que significamos.
E somos o vento, os caminhos do vento sobre os rostos.
O vento dentro da escuridão como o único objecto que pode ser tocado.
Debaixo da pele, envolvemos as memórias, as ideias, a esperança e o desencanto.

José Luís Peixoto

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Semblante de Mãe

 Onde quer que eu vá 
Vou estar de olho atento 
À vossa menor tristeza
Uma de ouro, outro de carvão. 

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Puff...uma solução

"A diferença entre solução e direcção é esta: 
a solução é sempre um remédio passageiro para disfarçar a desgraça."

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Outubro

De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

Natália Correia