sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Se me legasses as tuas mãos

Poderias mergulhar como um só bloco no nada para onde vão os mortos:
consolar-me-ia se me legasses as tuas mãos.
Apenas as tuas mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as dos deuses de mármore que se tornam pó e cal dos seus próprios túmulos.
Elas sobreviveriam aos teus actos, aos miseráveis corpos que acariciaram.
Entre as coisas e ti, elas já não seriam intermediários: seriam elas próprias,
transformadas em coisas.
Voltando a ser inocentes, pois tu já lá não estarias para fazer delas tuas cúmplices, tristes como galgos sem dono, desconcertadas como arcanjos a quem já nenhum deus dá ordens, as tuas mãos vãs repousariam sobre os joelhos das trevas.
As tuas mãos abertas, incapazes de dar ou de agarrar qualquer alegria,
ter-me-iam deixado cair como uma boneca quebrada.
Beijo ao nível do pulso essas mãos indiferentes que a tua vontade já não afasta das minhas;
acaricio a artéria azul, a coluna de sangue que outrora, incessante como o jacto de uma fonte,
surgia do solo do teu coração.
Com pequenos soluços satisfeitos, encosto a cabeça como uma criança,
entre as palmas cheias de estrelas, de cruzes,
de precipícios daquilo que foi o meu destino.
MY

5 comentários:

  1. Não são suficientes, as mãos...
    Belíssimo!

    Beijo, SD. :)

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  2. Imagem impactante.
    Poema forte... Mas a parte que se pensa isolar do outro e que se julga bastar-nos, é o outro inteiro. Talvez.
    Um beijo, SD.

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  3. As palavras e a imagem estão em perfeita harmonia SD.
    Gostei muito.
    Um beijo
    :)

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  4. a ronda das horas
    iluminam-se de arcanjos
    as tuas mãos aparecem
    acariciam como penas
    penosas penas
    de ser quem eram.
    desconcertadas.
    sobrevivem só por ti
    agarro-te
    ao caíres dá-se o milagre

    vês como é?
    digo.

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