sábado, 6 de fevereiro de 2016

Mas não no mundo nem no meu coração

Hoje chove muito, muito,

dir-se-ia que estão a lavar o mundo.
o meu vizinho do lado vê a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor
uma carta à mulher com quem vive
e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele
e se parece com a sua sombra
o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher
entra em casa pela janela e não pela porta
por uma porta entra-se em muitos sítios
no trabalho, no quartel, na prisão,
em todos os edifícios do mundo
mas não no mundo
nem numa mulher, nem na alma
quer dizer, nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim
como hoje, que chove muito
e custa-me escrever a palavra amor
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa
e só a alma sabe onde as duas se encontram
e quando  e como, mas que pode a alma explicar

por isso o meu vizinho tem tempestades na boca palavras que naufragam
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na mesma noite em que ele amou
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá
como o silêncio que existe entre duas rosas
ou como eu ,que escrevo palavras para regressar
ao meu vizinho que vê a chuva 

Juan Gelman
“No avesso do mundo”


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